sexta-feira, 8 de agosto de 2008

68, o ano que nem começou (Capítulo 2)

Em Nova York, um formigueiro humano fervilha por dezenas de quarteirões da estação de metrô Queensboro Place até as margens do rio East River. As águas são escuras, o ar é pesado, malcheiroso e quente. Os galpões industriais foram transformados em acampamento. Milhares de pessoas afunilam-se na ponte Queensboro, ocupando-a completamente. Outra multidão, bem menor, bloqueia o acesso à ilha de Manhattan. Todos os túneis e demais pontes foram igualmente bloqueados, tanto os da Grande Ilha quanto os do continente. O cerco à Manhattan já dura meses.



Aproximo-me até discernir construções, veículos e rostos. As pessoas compartilham grandes cilindros azuis de oxigênio, revezando as mascaras constantemente. Encostada no alambrado amarelo da ponte, embaixo das grandes armações de aço, reconheço a face de uma mulher idosa com uma familiar meia lua no centro da testa. Quantas décadas sem reencontrá-la? Helenice, no meio da ponte W, olha para a esquerda, entre as duas velhas chaminés da Marupi e um painel holográfico na margem do rio onde a defasada frase “Happy 2068 New Year” tremula falhando. Seus olhos vão além do extremo sul da ilha Roosevelt Island sob a ponte. Desejam o mesmo alvo de todos ao seu redor: a sede da ONU.

Muitos carregam faixas e cartazes, mas Helenice, tal qual alguns, carrega um disco preto nas mãos. O que eles querem é apenas consumar um ato simbólico, já efetuado em quase todas as partes do mundo: depositar um disco holográfico em cada assento que tenha sido ocupado por um poderoso.

Por todos os lugares do mundo, de um lado, sessenta famílias controlando toda a riqueza do planeta enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, milhões de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se organizam mundialmente através da Grande Rede e deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos.

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