sábado, 29 de novembro de 2008

A Kombi Preta - Videoconto capítulo Romance




Existem coisas que a gente pensa que nunca vão acontecer conosco ou com alguém conhecido.
Naquela manhã, acordei cedo, tomei banho e café rápidos e joguei a mochila nas costas. Fiz a caminhada habitual em direção ao CEFET-CE (Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará).
Odeio acordar cedo, mas a grana de bolsista de laboratório de informática, apesar de mixuruca, era um grande motivador a quem não tinha outra opção para sair da típica “liseira” estudantil. Aquele era o único e ingrato horário que me ofereceram e tive que aceitar.
Geralmente, chego atrasado de propósito pra poder dormir um pouco mais. Faço isto também para aproveitar o fato de que ninguém usa mesmo o laboratório às 7h da manhã em ponto, talvez porque a maioria também odeie acordar cedo mesmo.
Mas neste dia havia outro fator motivante: meu amigo Franzé me ligou ansioso na noite anterior querendo urgentemente me entregar um material que, segundo ele, não poderia ficar nas mãos de uma única pessoa. Não teceu detalhes, agendou comigo às 6 e meia no laboratório e desligou.
Passei a noite preocupado. Devia ser algo grave mesmo, pois meu amigo nunca telefonava. Tinha o hábito de falar sempre pessoalmente. E agendar tão cedo assim...? Definitivamente, era grave! Não era típico de um astrônomo amador que geralmente tem hábitos noturnos querer resolver alguma coisa de manhãzinha.
Caminhando introspectivo em frente à Escola de Cinema da Universidade Federal, resolvi cortar caminho por dentro daquele Campus, enquanto imaginava o que meu amigo desejava me entregar. Quando cruzei o portão em frente ao bloco da Psicologia, entrando na deserta rua onde mora o humorista Falcão, palpitei de alegria ao ver o simpático e moreno rosto do Franzé, que cruzava a esquina do Bar Cantinho Acadêmico.
Ele para, me sorri, e volta o rosto e a mão direita pra dentro da mochila, de onde retira um CD-ROM. Foi quando uma Kombi preta freia do seu lado e dois marmanjos de farda verde-oliva saltam da porta semiaberta onde vi de relance o letreiro: CETEX. O reflexo que tive foi o de me esconder rapidamente num recuo de muro, enquanto o Franzé só teve tempo de gritar: – CONJUNÇÃO!!! – enquanto quebrava o CD, cortando feio as mãos, antes de ser arrastado pela camisa pra dentro daquela Kombi de placa branca que cantou pneu em disparada pela Avenida 13 de Maio.
Agora, meu palpitar era de medo! Passei pelos cacos ensanguentados do CD espalhados pelo asfalto e corri até a esquina pra me certificar de que o veículo havia mesmo sumido. Respirei aliviado e resolvi fazer o resto do caminho até o CEFET, contornando a praça da Gentilândia para entrar no Centro Tecnológico por trás, pela rua do Estádio Presidente Vargas. Assim, por precaução, despistava um pouco, enquanto meditava sobre o ocorrido através de uma caminhada mais longa.
Será que eles virão atrás de mim? Quando agarraram o meu amigo, não deixei que me vissem de forma alguma. Será que me associariam de alguma forma ao Franzé? Achava pouco provável. Mantinha tanto contato com ele, quanto a maioria dos outros colegas de faculdade. Mas, e aquela única ligação telefônica? Aliviado, lembrei dos bips característicos das unidades de cartão telefônico sendo subtraídas. Um grampo num orelhão escolhido a esmo era quase impensável. Nisto o Franzé fora cuidadoso. Mas, por que pegaram o cara? O que fariam com ele? Minha cabeça fervilhava enquanto entrava no CEFET.
A primeira ação que fiz ao entrar no laboratório foi pesquisar no GoogleTM a sigla CETEX cruzada com a palavra Exército. Mas o que o “Centro Integrado de Telemática do Exército” poderia querer...? E o que o Franzé quis dizer com a palavra “conjunção”? A expressão me lembrou a única vez em que assistimos juntos uma conjunção de planetas. Era algum dia de março de 1996, quando nos reunimos na casa dos pais do professor Omar e fizemos várias astrofotografias da triangulação formada pela Lua, Vênus e por Saturno. Foi neste contexto que aconteceu um fato inusitado e sem explicação física plausível, mas como todos do grupo de astronomia éramos muito céticos, deixamos o assunto pra lá.
O Franzé é o tipo de pessoa do qual se conhece mais as ideias, do que a vida pessoal. A sua tese de que Universos se recriam constantemente até mesmo dentro de nós, por exemplo, eu tento entender até hoje. Ele veio sozinho de São Paulo há alguns meses e frequentava o CEFET como aluno especial, até que conseguisse a necessária transferência. Já com relação às ideias, meus amigos que discutiam Filosofia e Física no meio acadêmico tinham-no como o mais marcantemente lógico, racional, cético e humano de todos.

O inexplicável era o fato de que, na primeira vez em que o levei ao Observatório e o apresentei ao professor Omar, este, ao lhe fazer um convite para participar das astrofotografias da dita conjunção, simplesmente impediu que o professor lhe dissesse o endereço. Para espanto dos presentes, descreveu em detalhes o lugar, como se já estivesse ido lá. Este era nosso segredo.
Enquanto buscava nexo entre o rapto e a conjunção, minha caixa de correio eletrônico sinalizou uma nova mensagem: era um e-mail do Franzé! Abri rápido. Continha apenas um anexo e uma frase: “tanto ascende, quanto declina”. Clicando no arquivo, surgiu uma tela requisitando uma senha. Só haveria um jeito de ler a mensagem criptografada: encontrar uma relação entre o fenômeno celeste e aquela frase esquisita. Quem ascende e declina são os astros, pensei. Tentei então as combinações possíveis de Lua, Vênus e Saturno, mas nada. Pensei, pensei... E se fosse a sequência numérica da ascensão reta e da declinação daquela conjunção planetária? Lembrei que tinha o anuário do Mourão na mochila e, após consultá-lo, digitei: 22 37 56 01 32 56. – Eureca!!! – Então, ofegante, consegui ler a mensagem:

Prezado Moura,
Programei no servidor de e-mail uma rotina que dispararia esta mensagem caso eu não a reagendasse hoje às 7h da manhã. Se você recebeu esta mensagem, é porque a informação que precisa ser divulgada urgentemente está sob o risco de ser silenciada e decidi confiar a você o destino da mesma.
Por precaução, a mesma rotina que enviou esta mensagem formatou fisicamente o servidor “Benfica”. Sugiro que faça o mesmo com sua máquina. Depois vá até o banheiro masculino, ao lado da escada do corredor central. Sobre o segundo Box, há um alçapão que dá acesso ao forro do telhado. Na base da terceira coluna da direita há um jornal velho. Dentro dele há uma caixa de CD-ROM. Pegue, proteja e publique o arquivo.
Atenciosamente.
Francisco José
Estupefato e ansioso, fiz o rastreamento dos caminhos por onde aquele e-mail havia passado. Aliviado, vi que apenas o servidor de e-mails Benfica e a minha máquina estavam envolvidos. Pinguei no IP 200.17.33.1 e verifiquei que realmente o Benfica estava fora de combate, mas não confiava em formatação. Qualquer ferramenta de recuperação de disco é capaz de restaurar dados. Contra isto, só havia um jeito. Corri até a sala do Diretório dos Estudantes e, como eu era diretor e tinha a chave, entrei e peguei o grande imã de caixa de som usado pra segurar uma pilha de cartazes. Corri ao laboratório e passei a belezinha nos Discos Magnéticos do servidor e da minha máquina. Pronto! Dane-se a dor de cabeça que terei depois para arrumar a bagunça.
Chegaram os primeiros usuários do laboratório. Entre reclamos de servidor fora do ar, aguentei minha curiosidade até que meu horário de trabalho terminasse. Afinal, se ele realmente estivesse lá, o local mais seguro para o CD era o forro mesmo. Até que chegou o outro bolsista e eu saí quase correndo. Ainda esbarrei com uns caras esquisitos que entravam no laboratório. Apressei o passo.
Inspecionei o banheiro. Havia somente um aluno branquinho, lavando as mãos. Faço de conta que mijo e, quando o cara sai, fecho a porta principal do banheiro e subo no forro. Realmente estava lá. Desço um pouco sujo de poeira, mas com o CD já dentro da calça. Ninguém me seguia. Fui direto pra casa.
Passei o resto do dia lendo o conteúdo do CD. Eram centenas de páginas, nas quais o Franzé relatava uma história intrigante que dizia respeito ao futuro com revelações que me arrepiavam a espinha.
Por precaução, fiz cópias do CD-ROM e o escondi em lugares estratégicos. Programei também uma rotina de mensagem criptografada a partir de meu sítio pessoal. Agora, estava pensando no que fazer para ter meu amigo de volta. Abriria um B.O. de pessoas desaparecidas? Não, isso seria me expor. Comunicar à família dele? Como achar sua família? Talvez fosse possível, se pesquisasse na sua ficha de transferência. Amanhã pensaria em como ver a dita ficha.
No dia seguinte, para minha surpresa, o Franzé entra no laboratório como se nada tivesse acontecido.
– Cara, pra onde te levaram ontem? – Pergunto-lhe cochichando.
– Levaram? Que estória é essa? – Me responde com o olhar no vazio.
– Uns caras, numa Kombi preta!
– Ontem passei o dia em casa cuidando deste corte na minha mão que machuquei cortando uma laranja.
– E o CD?! – Gritei.
– Que CD?
As pessoas já começavam a olhar para nós. Entre elas, dois marmanjos esquisitos a apurarem os ouvidos.
– O CD de instalação do Linux que eu te emprestei! – Brado blefando para disfarçar. – Não está vendo a bagunça neste laboratório que eu ainda tenho que arrumar?
– Esqueci em casa. – Me responde também disfarçadamente. – Mas te consigo outro ainda hoje.
– Deixa pra lá, agora. – Volto a cochichar. – Depois converso na calma e a sós com você.
– O Franzé deu de ombros com uma sinceridade que me intrigou.
Por vários dias tentei reencontrá-lo para conversarmos sobre o acontecido e nada. Até que recebi uma notícia de que ele havia conseguido uma transferência para o Rio de Janeiro e se foi. Três meses depois ele me enviou um e-mail dizendo, em código, que iria sumir definitivamente.
Hoje, faz dez anos que atualizo diariamente uma rotina de e-mail automático criptografado e guardo aquele CD. Tenho medo de que, ao tentar publicá-lo, uma Kombi preta me pare na rua.
O problema é que a História escrita pelo Franzé está cada vez mais se confirmando diariamente. Em 1998, por exemplo, ele escreveu que um metalúrgico seria presidente do Brasil! Isto tem feito meu senso de dever tornar-se superior à minha covardia.
Bem, se você está lendo isto agora, é porque tomei coragem. Por cautela, para sondar se ainda há perigo, resolvi publicar um a um os capítulos do CD no Blog http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/ que divulgo com os amigos. Estou publicando entre os amigos a íntegra dos textos do Franzé através do Romance “Retorno ao Big Bang Microcósmico”. Aos verdes-oliva, aviso-lhes que todo o conteúdo daquele CD será automaticamente disseminado na Internet caso alguma Kombi preta nos pare na rua.
O autor.


“A propaganda é para a democracia burguesa o que o cassetete é para o estado totalitário”. (Noam Chomsky)

“Quando a Mídia não detém as novas ideias, o porrete volta à cena”?