sábado, 29 de novembro de 2008

A Kombi Preta - Videoconto capítulo Romance




Existem coisas que a gente pensa que nunca vão acontecer conosco ou com alguém conhecido.
Naquela manhã, acordei cedo, tomei banho e café rápidos e joguei a mochila nas costas. Fiz a caminhada habitual em direção ao CEFET-CE (Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará).
Odeio acordar cedo, mas a grana de bolsista de laboratório de informática, apesar de mixuruca, era um grande motivador a quem não tinha outra opção para sair da típica “liseira” estudantil. Aquele era o único e ingrato horário que me ofereceram e tive que aceitar.
Geralmente, chego atrasado de propósito pra poder dormir um pouco mais. Faço isto também para aproveitar o fato de que ninguém usa mesmo o laboratório às 7h da manhã em ponto, talvez porque a maioria também odeie acordar cedo mesmo.
Mas neste dia havia outro fator motivante: meu amigo Franzé me ligou ansioso na noite anterior querendo urgentemente me entregar um material que, segundo ele, não poderia ficar nas mãos de uma única pessoa. Não teceu detalhes, agendou comigo às 6 e meia no laboratório e desligou.
Passei a noite preocupado. Devia ser algo grave mesmo, pois meu amigo nunca telefonava. Tinha o hábito de falar sempre pessoalmente. E agendar tão cedo assim...? Definitivamente, era grave! Não era típico de um astrônomo amador que geralmente tem hábitos noturnos querer resolver alguma coisa de manhãzinha.
Caminhando introspectivo em frente à Escola de Cinema da Universidade Federal, resolvi cortar caminho por dentro daquele Campus, enquanto imaginava o que meu amigo desejava me entregar. Quando cruzei o portão em frente ao bloco da Psicologia, entrando na deserta rua onde mora o humorista Falcão, palpitei de alegria ao ver o simpático e moreno rosto do Franzé, que cruzava a esquina do Bar Cantinho Acadêmico.
Ele para, me sorri, e volta o rosto e a mão direita pra dentro da mochila, de onde retira um CD-ROM. Foi quando uma Kombi preta freia do seu lado e dois marmanjos de farda verde-oliva saltam da porta semiaberta onde vi de relance o letreiro: CETEX. O reflexo que tive foi o de me esconder rapidamente num recuo de muro, enquanto o Franzé só teve tempo de gritar: – CONJUNÇÃO!!! – enquanto quebrava o CD, cortando feio as mãos, antes de ser arrastado pela camisa pra dentro daquela Kombi de placa branca que cantou pneu em disparada pela Avenida 13 de Maio.
Agora, meu palpitar era de medo! Passei pelos cacos ensanguentados do CD espalhados pelo asfalto e corri até a esquina pra me certificar de que o veículo havia mesmo sumido. Respirei aliviado e resolvi fazer o resto do caminho até o CEFET, contornando a praça da Gentilândia para entrar no Centro Tecnológico por trás, pela rua do Estádio Presidente Vargas. Assim, por precaução, despistava um pouco, enquanto meditava sobre o ocorrido através de uma caminhada mais longa.
Será que eles virão atrás de mim? Quando agarraram o meu amigo, não deixei que me vissem de forma alguma. Será que me associariam de alguma forma ao Franzé? Achava pouco provável. Mantinha tanto contato com ele, quanto a maioria dos outros colegas de faculdade. Mas, e aquela única ligação telefônica? Aliviado, lembrei dos bips característicos das unidades de cartão telefônico sendo subtraídas. Um grampo num orelhão escolhido a esmo era quase impensável. Nisto o Franzé fora cuidadoso. Mas, por que pegaram o cara? O que fariam com ele? Minha cabeça fervilhava enquanto entrava no CEFET.
A primeira ação que fiz ao entrar no laboratório foi pesquisar no GoogleTM a sigla CETEX cruzada com a palavra Exército. Mas o que o “Centro Integrado de Telemática do Exército” poderia querer...? E o que o Franzé quis dizer com a palavra “conjunção”? A expressão me lembrou a única vez em que assistimos juntos uma conjunção de planetas. Era algum dia de março de 1996, quando nos reunimos na casa dos pais do professor Omar e fizemos várias astrofotografias da triangulação formada pela Lua, Vênus e por Saturno. Foi neste contexto que aconteceu um fato inusitado e sem explicação física plausível, mas como todos do grupo de astronomia éramos muito céticos, deixamos o assunto pra lá.
O Franzé é o tipo de pessoa do qual se conhece mais as ideias, do que a vida pessoal. A sua tese de que Universos se recriam constantemente até mesmo dentro de nós, por exemplo, eu tento entender até hoje. Ele veio sozinho de São Paulo há alguns meses e frequentava o CEFET como aluno especial, até que conseguisse a necessária transferência. Já com relação às ideias, meus amigos que discutiam Filosofia e Física no meio acadêmico tinham-no como o mais marcantemente lógico, racional, cético e humano de todos.

O inexplicável era o fato de que, na primeira vez em que o levei ao Observatório e o apresentei ao professor Omar, este, ao lhe fazer um convite para participar das astrofotografias da dita conjunção, simplesmente impediu que o professor lhe dissesse o endereço. Para espanto dos presentes, descreveu em detalhes o lugar, como se já estivesse ido lá. Este era nosso segredo.
Enquanto buscava nexo entre o rapto e a conjunção, minha caixa de correio eletrônico sinalizou uma nova mensagem: era um e-mail do Franzé! Abri rápido. Continha apenas um anexo e uma frase: “tanto ascende, quanto declina”. Clicando no arquivo, surgiu uma tela requisitando uma senha. Só haveria um jeito de ler a mensagem criptografada: encontrar uma relação entre o fenômeno celeste e aquela frase esquisita. Quem ascende e declina são os astros, pensei. Tentei então as combinações possíveis de Lua, Vênus e Saturno, mas nada. Pensei, pensei... E se fosse a sequência numérica da ascensão reta e da declinação daquela conjunção planetária? Lembrei que tinha o anuário do Mourão na mochila e, após consultá-lo, digitei: 22 37 56 01 32 56. – Eureca!!! – Então, ofegante, consegui ler a mensagem:

Prezado Moura,
Programei no servidor de e-mail uma rotina que dispararia esta mensagem caso eu não a reagendasse hoje às 7h da manhã. Se você recebeu esta mensagem, é porque a informação que precisa ser divulgada urgentemente está sob o risco de ser silenciada e decidi confiar a você o destino da mesma.
Por precaução, a mesma rotina que enviou esta mensagem formatou fisicamente o servidor “Benfica”. Sugiro que faça o mesmo com sua máquina. Depois vá até o banheiro masculino, ao lado da escada do corredor central. Sobre o segundo Box, há um alçapão que dá acesso ao forro do telhado. Na base da terceira coluna da direita há um jornal velho. Dentro dele há uma caixa de CD-ROM. Pegue, proteja e publique o arquivo.
Atenciosamente.
Francisco José
Estupefato e ansioso, fiz o rastreamento dos caminhos por onde aquele e-mail havia passado. Aliviado, vi que apenas o servidor de e-mails Benfica e a minha máquina estavam envolvidos. Pinguei no IP 200.17.33.1 e verifiquei que realmente o Benfica estava fora de combate, mas não confiava em formatação. Qualquer ferramenta de recuperação de disco é capaz de restaurar dados. Contra isto, só havia um jeito. Corri até a sala do Diretório dos Estudantes e, como eu era diretor e tinha a chave, entrei e peguei o grande imã de caixa de som usado pra segurar uma pilha de cartazes. Corri ao laboratório e passei a belezinha nos Discos Magnéticos do servidor e da minha máquina. Pronto! Dane-se a dor de cabeça que terei depois para arrumar a bagunça.
Chegaram os primeiros usuários do laboratório. Entre reclamos de servidor fora do ar, aguentei minha curiosidade até que meu horário de trabalho terminasse. Afinal, se ele realmente estivesse lá, o local mais seguro para o CD era o forro mesmo. Até que chegou o outro bolsista e eu saí quase correndo. Ainda esbarrei com uns caras esquisitos que entravam no laboratório. Apressei o passo.
Inspecionei o banheiro. Havia somente um aluno branquinho, lavando as mãos. Faço de conta que mijo e, quando o cara sai, fecho a porta principal do banheiro e subo no forro. Realmente estava lá. Desço um pouco sujo de poeira, mas com o CD já dentro da calça. Ninguém me seguia. Fui direto pra casa.
Passei o resto do dia lendo o conteúdo do CD. Eram centenas de páginas, nas quais o Franzé relatava uma história intrigante que dizia respeito ao futuro com revelações que me arrepiavam a espinha.
Por precaução, fiz cópias do CD-ROM e o escondi em lugares estratégicos. Programei também uma rotina de mensagem criptografada a partir de meu sítio pessoal. Agora, estava pensando no que fazer para ter meu amigo de volta. Abriria um B.O. de pessoas desaparecidas? Não, isso seria me expor. Comunicar à família dele? Como achar sua família? Talvez fosse possível, se pesquisasse na sua ficha de transferência. Amanhã pensaria em como ver a dita ficha.
No dia seguinte, para minha surpresa, o Franzé entra no laboratório como se nada tivesse acontecido.
– Cara, pra onde te levaram ontem? – Pergunto-lhe cochichando.
– Levaram? Que estória é essa? – Me responde com o olhar no vazio.
– Uns caras, numa Kombi preta!
– Ontem passei o dia em casa cuidando deste corte na minha mão que machuquei cortando uma laranja.
– E o CD?! – Gritei.
– Que CD?
As pessoas já começavam a olhar para nós. Entre elas, dois marmanjos esquisitos a apurarem os ouvidos.
– O CD de instalação do Linux que eu te emprestei! – Brado blefando para disfarçar. – Não está vendo a bagunça neste laboratório que eu ainda tenho que arrumar?
– Esqueci em casa. – Me responde também disfarçadamente. – Mas te consigo outro ainda hoje.
– Deixa pra lá, agora. – Volto a cochichar. – Depois converso na calma e a sós com você.
– O Franzé deu de ombros com uma sinceridade que me intrigou.
Por vários dias tentei reencontrá-lo para conversarmos sobre o acontecido e nada. Até que recebi uma notícia de que ele havia conseguido uma transferência para o Rio de Janeiro e se foi. Três meses depois ele me enviou um e-mail dizendo, em código, que iria sumir definitivamente.
Hoje, faz dez anos que atualizo diariamente uma rotina de e-mail automático criptografado e guardo aquele CD. Tenho medo de que, ao tentar publicá-lo, uma Kombi preta me pare na rua.
O problema é que a História escrita pelo Franzé está cada vez mais se confirmando diariamente. Em 1998, por exemplo, ele escreveu que um metalúrgico seria presidente do Brasil! Isto tem feito meu senso de dever tornar-se superior à minha covardia.
Bem, se você está lendo isto agora, é porque tomei coragem. Por cautela, para sondar se ainda há perigo, resolvi publicar um a um os capítulos do CD no Blog http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/ que divulgo com os amigos. Estou publicando entre os amigos a íntegra dos textos do Franzé através do Romance “Retorno ao Big Bang Microcósmico”. Aos verdes-oliva, aviso-lhes que todo o conteúdo daquele CD será automaticamente disseminado na Internet caso alguma Kombi preta nos pare na rua.
O autor.


“A propaganda é para a democracia burguesa o que o cassetete é para o estado totalitário”. (Noam Chomsky)

“Quando a Mídia não detém as novas ideias, o porrete volta à cena”?

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Acabou? (Capítulo 1)


Tudo ao redor encolhia e se movia rapidamente aos meus olhos. A Terra azul acinzentava-se enquanto a Lua em espiral veloz cai finalmente em seu arenoso oceano. Vejo quando o Sol se expande numa gigante vermelha e engole Mercúrio, Vênus, Terra, Marte e o cinturão de asteróides. A via Láctea gira como um furacão uniforme até que Andrômeda colide nela seus braços espiralados.







Enquanto cresço e fujo dali mais rápido que a luz, bilhões de galáxias não passam de um enxame de vaga-lumes multicores. Quanto mais me distancio daquele esférico Universo, mais rápido ele se expande e suas galáxias se apagam até não se ver mais nada. Ouço minha própria voz dizendo: - As consciências sobreviverão ao colapso do Universo?

68, o ano que nem começou (Capítulo 2)

Em Nova York, um formigueiro humano fervilha por dezenas de quarteirões da estação de metrô Queensboro Place até as margens do rio East River. As águas são escuras, o ar é pesado, malcheiroso e quente. Os galpões industriais foram transformados em acampamento. Milhares de pessoas afunilam-se na ponte Queensboro, ocupando-a completamente. Outra multidão, bem menor, bloqueia o acesso à ilha de Manhattan. Todos os túneis e demais pontes foram igualmente bloqueados, tanto os da Grande Ilha quanto os do continente. O cerco à Manhattan já dura meses.



Aproximo-me até discernir construções, veículos e rostos. As pessoas compartilham grandes cilindros azuis de oxigênio, revezando as mascaras constantemente. Encostada no alambrado amarelo da ponte, embaixo das grandes armações de aço, reconheço a face de uma mulher idosa com uma familiar meia lua no centro da testa. Quantas décadas sem reencontrá-la? Helenice, no meio da ponte W, olha para a esquerda, entre as duas velhas chaminés da Marupi e um painel holográfico na margem do rio onde a defasada frase “Happy 2068 New Year” tremula falhando. Seus olhos vão além do extremo sul da ilha Roosevelt Island sob a ponte. Desejam o mesmo alvo de todos ao seu redor: a sede da ONU.

Muitos carregam faixas e cartazes, mas Helenice, tal qual alguns, carrega um disco preto nas mãos. O que eles querem é apenas consumar um ato simbólico, já efetuado em quase todas as partes do mundo: depositar um disco holográfico em cada assento que tenha sido ocupado por um poderoso.

Por todos os lugares do mundo, de um lado, sessenta famílias controlando toda a riqueza do planeta enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, milhões de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. São os braços de três bilhões de sobreviventes que se organizam mundialmente através da Grande Rede e deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e natureza que perdurou por mais de cinco séculos.

Faxina (Capítulo 3)

"Que venha a democracia direta eletrônica e o povo,
via Internet, Celular ou TV Digital, assine leis certificadas digitalmente
e as realizem pela força das ações articuladas no mundo virtual para o real."

- Hora de acordar, Franzé! Daqui a pouco os turistas chegam. – Me sacode o faxineiro Zé. Sinto meu corpo todo tremer, mas não devido à sacudidela. Ah se o Zé soubesse por onde minha consciência vagava...

- Obrigado, Zé. Já já iremos.

Na penumbra, me espreguiço e sento no carpete da laje. Gosto de dormir ali, naquele chão da borda superior da concha da câmara dos deputados. Observo lá embaixo o centro iluminado com suas poltronas em semicírculo e a cortina atrás da mesa como uma cachoeira do teto da concha até o chão. A cortina, antes com vinte e nove retângulos inúteis, agora é um grande painel onde milhões de pequenos rostos se revezavam, apresentando cada brasileiro que delibera naquele momento. Tal qual uma arena de gladiadores romanos, agora a batalha na plenária se dá entre os hologramas projetados por discos pretos em cada poltrona, assistidos por uma platéia invisível espalhada pelo mundo afora.

- Zé, que tal começarmos a espanar a poeira da mesa da presidência da plenária?

- Acho bom, Franzé. De lá podemos observar o que mais devemos retocar.

- Daqui se vê que a bandeira do Brasil no carpete inclinado em frente à mesa precisa de realce.

- Pode deixar comigo. É minha tarefa preferida.

Enquanto descíamos, pensava: mesmo aposentado como engenheiro, aquela sim era uma prazerosa ocupação antes que eu partisse desta vida. Gostava de apreciar o dinamismo com que o povo participava diretamente das decisões políticas. Sabia que a nova democracia que se alastrava pelo mundo neste ano de 2068 não dependia destes prédios, destas arenas.

Este espaço era apenas mais um entre milhares de espaços simbólicos do planeta que serviam apenas para serem apreciados de vez em quando por um turista ou cidadão. Para completar, só restavam serem simbolizadas à nova ordem as sedes do Governo Chinês, da União Européia e da ONU.

Esta conquista não foi fácil. Durante décadas as pessoas de todo o mundo se decepcionavam com a farsa que era a democracia representativa. A pequena elite dona de todos os poderes, manipulava as massas para convencê-la de que tudo era melhor assim. No entanto, o ar irrespirável, o calor insuportável, as tempestades diárias, a fome e a miséria universalizando-se, os alimentos e as águas potáveis escassos provocados pelas Corporações globais contradiziam e falavam mais alto.

Na segunda década do milênio, ativistas digitais tentaram popularizar sistemas de votação com validação jurídica baseada em assinatura digital. Movimentos partidaristas se opõem e criminalizam cada vez mais os abaixo assinados digitais, alegando que podem ser coercitivos de "curral eleitoral" ou que atentam contra a representatividade parlamentar. A elite detentora dos políticos, receosa de perder o poder de lobbies, coopta um a um os cabeças do movimento de software livre para o voto direto Universal e livre. Elas oferecem a eles empregos pagando o dobro e até o quádruplo do valor de mercado e boa parte deles cedem. Uma pequena parcela deles passam a integram equipe que desenvolvem um software similar, mas que garante o poder de manipulação às minorias elitistas.

Assim, a organização dos coletivos numa rede de democracia direta eletrônica, por se basear em tecnologias web e ferramentas das próprias grandes corporações (google, orkut), foi sabotada pelas mesmas através da descoberta dos cabeças dos movimentos e paulatina cooptação dos mesmos com ofertas de trabalho irrecusáveis. Os poucos que resistiram não deram conta de manter os coletivos organizados, e o império da desorganização coletiva e aceitação pacífica/pouco efetiva foi mantido.

No Brasil, num dia de final de copa do mundo em 2014, os parlamentares votam em último turno a emenda constitucional que modifica o parágrafo único do Artigo primeiro da constituição Federal, suprimindo as expressões “ou diretamente”, bem como suprimido o inciso III do Artigo 14 da mesma constituição. Como nos demais países, estava criminalizada a democracia Direta no Brasil.
Mesmo assim, em todas as partes do mundo, o povo se organizou mundialmente e começou a deliberar petições e abaixo-assinados que eram votados de forma contrária pelos representantes governamentais. Esta organização se iniciou através da popularização do comércio eletrônico mundial. Isto porque tanto o comércio quanto as demais relações foram asseguradas por diversas formas compatíveis de assinatura contratual: certificados digitais, assinaturas biométricas e genéticas.

O poder das elites decaiu porque, ao longo das décadas as mídias de massa, antes garantia de manipulações ideológicas, começaram a ser cada vez mais conduzidas pelo povo. Cada pessoa hoje é, ao mesmo tempo, produtor e telespectador de conteúdos. Pessoas simples com interesses e conhecimentos afins produzem mundialmente mídias muito mais interessantes que qualquer grande corporação. Grupos se organizaram para clarear as contas públicas e corporativas no formato da linguagem do povão, simuladores de decisões apresentam os impactos de cada decisão política e econômica para o povo a curto, médio e longo prazo e analisadores de idéias e discursos sintetizam ao povo o que lhe interessa. O resultado disto foi o choque entre os interesses de uma minoria privilegiada e o resto da humanidade.

Quando o povo percebeu que os dinheiros sem pátria que especulam ao redor do mundo são os grandes responsáveis pela irracionalidade dos empreendimentos humanos, quando viram que um dinheiro à quem não se pode atribuir um responsável humano, mas que em forma de ações nas bolsas, a elite lhe direciona impessoalmente para a exploração máxima da Natureza e do homem, votaram mundialmente sua regulação. Quando a petição aprovada mundialmente para taxar e identificar pessoalmente os responsáveis pelos investimentos chegou ao congresso Nacional, os seus parlamentares rejeitaram. Isto se deu similarmente em quase todos os parlamentos do mundo.

Definitivamente, verificou-se que a maioria dos parlamentares é mais representante das elites que do povo que o elegeu. O povo enfim entendeu a lógica da lei do pelego: é mais fácil comprar o poder que está na mão de poucos do que na mão de todos. Porque cada homem tem seu preço. Também porque um milhão para apenas um homem é muito dinheiro, mas para multidões e para as corporações é quase nada. E, finalmente, comprar as multidões é tão ruin para os negócios quanto lhes devolver os direitos que reivindicam.

As corporações multinacionais e seus parlamentares estavam indiferentes às deliberações diretas do povo, até que as multidões articularam ações simultâneas que afetaram seus negócios. Quando a Sheller Oil insistia em produzir derivados de petróleo agredindo a natureza, o povo deixava de comprar os seus produtos até que sua produção fosse sustentável. A Sunsing deixou de produzir eletrônicos com mão de obra escrava quando a maioria do povo parou de consumir seus produtos. Greves mundiais organizadas mundialmente garantiram a redução da jornada de trabalho para 6 horas, mais vagas de emprego e melhoria de salários.

Através de um abaixo assinado mundial na Internet, cada povo aprovou a lei da soberania popular eletrônica. Através dela, uma lei assinada pela maioria de um povo não precisaria ser votada nas tradicionais casas legislativas. A rejeição imediata dos parlamentares à lei pôs em cheque a democracia representativa e provocou o cerco às sedes do poder em todo o planeta.

Como agora eu não estava mais presente em Nova York tal qual a minutos atrás, me contentava em acompanhar o desenrolar do cerco à Manhattan a partir da tv projetada na minha lente de contato do olho direito. Na lente do olho esquerdo, comandava por voz o acompanhamento das principais questões que estavam sendo votadas, bem como as fiscalizações de contas em andamento.

- Zé, nada de competições hoje. Ok? Meu reumatismo está latejando.

O Zé ria às gaitadas. Enquanto eu direcionava meu aspirador iônico em cada parte da mesa da presidência da plenária, meu parceiro fazia o mesmo em cada uma de suas poltronas. Não só poeiras, mas quaisquer manchas eram ionizadas e sugadas pelos aspiradores. Quando cansava, parava para observar e participar das deliberações.

Estava em votação uma proposta de Reforma tributária. O imposto de renda deverá ser proporcional de tal forma que quanto maior os rendimentos individuais, maior a porcentagem de imposto sobre a renda e, para quem ganha abaixo dos direitos fundamentais, isenção e recebimento de renda complementar. A proposta não precisou ser votada pela câmara de deputados virtuais. Ela fora diretamente aprovada por 65% dos eleitores e virou lei.

Em seguida, as propostas de regulamentação desta lei foram chegando: O limite do imposto sobre a renda será de 30%, 40%, 50%, 60% ou 70%? Eu acionei meu simulador de impactos na minha lente direita. 30% não reduziria muito a concentração de renda no Brasil. 60% e 70% apontavam para baixo poder de compra e investimentos que fariam o país reduzir o crescimento. Na tela da lente esquerda votei em 40%, mas o limite de 50% ganhou diretamente.

- Zé, hora de aspirar a plenária!

- Certo. Eu limpo a esquerda e você a direita, ok?

As propostas de faixas de tributação foram apresentadas: 50 faixas de tributação de R$1.000,00 até R$50.000,00 tantos por cento quantos sejam os mil reais recebidos por mês; 25 faixas de tributação de R$1.000,00 até R$100.000,00 0,25% quantos sejam os mil reais recebidos por mês. Ou 100 faixas de tributação de R$1.000,00 até R$100.000,00 meio por cento quantos sejam os mil reais recebidos por mês. Parei a aspiração e, após conferir os simuladores, votei na primeira opção. Como o resultado estava demorando, voltei à faxina. Após o tempo limite de meia hora, apuraram-se os votos e apenas 47% haviam votado. Agora sim os hologramas virtuais começaram a se digladiar com palavras nas poltronas da câmara.

Terminamos a limpeza e os turistas começavam a entrar na plenária. Após 20 minutos, os deputados votaram e a proposta de 25 faixas de tributação ganhou. Dez minutos depois, em meio À votação da mesma matéria no senado, a votação direta atingiu 51% de votantes e, destes, 67% aprovaram a proposta de 50 faixas de tributação. Esta vencedora, fez encerrar-se definitivamente a votação.

As propostas eram apresentadas diretamente pelo povo. - Pensava enquanto bebia água com o Zé. - Eu mesmo submeti no parlamento do bairro onde moro uma proposta de lei que garantia equipamentos de última geração aos faxineiros de órgãos públicos. Minha proposta foi aprovada e passou a ser apreciada pela câmara de vereadores virtuais. Lá, outra proposta similar de outro bairro foi unificada à minha. Uma terceira proposta similar, mas que requeria os equipamentos apenas para órgãos municipais, foi votada, aprovada e encerrada. Minha proposta não atingiu o interesse da maioria das pessoas de minha cidade e não foi aprovada diretamente no tempo legal. Com isto os vereadores receberam o poder de decidir a questão. A proposta foi aprovada por eles. Agora a mesma estava sendo apreciada à nível estadual. Ela nem aparece na lista das mais interessantes, e por isto, tenho certeza que não será votada diretamente, mas a partir de representantes eleitos.

É bom que seja assim mesmo: As questões mais relevantes sendo decididas diretamente pelo povo e as menos importantes sendo delegadas aos representantes. Representantes de verdade, lembro enquanto observo-os à minha frente. Os hologramas apenas apresentavam o brasileiro da vez que estava eleito deputado naquele momento, que tinha a confiança de quem o elegeu.

De vez em quando, o rodapé de algum holograma fica avermelhando ao mostrar uma numeração diminuindo (eleitores retirando votos do político), até que outro avatar, de verde numeração elevada, substitui em tempo real o que perdeu votos de representatividade. As candidaturas e eleições ocorrem o tempo todo, e o voto sempre pode ser retirado de um candidato e atribuído a outro mais comprometido com o eleitor. Isto garante a representação real do povo.

- Até amanhã, Zé.

- Até, Fran. Da próxima vez aspiraremos o senado.

Enquanto caminhava por baixo da rampa do planalto em meio ao sol escaldante, relembrava: desde que a democracia direta eletrônica começou no Brasil, muitas coisas mudaram.

O povo aprovou a auditoria da dívida externa. Em seis meses, ficou comprovado que a dívida já fora paga com sobras. Decretou-se moratória. Os investidores ameaçaram retirar o dinheiro do Brasil, mas como nossos negócios são seguros, se aquietaram.

A auditoria das terras também foi aprovada e culminou com a Reforma agrária esperada há séculos.

O povo também aprovou diretamente a retomada da nação indígena Waimiri Atroari. Ela havia sido alardeada como independente do Brasil pelas corporações americanas para que as mesmas explorassem o Amazonas com exclusividade.

Outras deliberações estavam em andamento: a auditoria e reestatização das outroras estatais que foram privatizadas com perdas para o povo brasileiro; a revitalização de todo o rio São Francisco e democratização do acesso à sua água. A proposta mais badalada é de refazer a transposição do rio São Francisco para que a água irrigue o semi-árido nordestino e não as áreas já ricas a qual fora originalmente destinada. Mas como a questão é muito técnica, o povo tem participado pouco e ela tem sido votada pelos parlamentares mesmo.


Outras propostas de pouca repercussão chegaram até a Câmara Virtual Federal por aprovação dos representantes de municípios e estados e foram decididas pelos deputados e senadores mesmo: o envio de um brasileiro à Marte foi aprovado, mais a estranha proposta de Reforma arquitetônica da concha plenária do Senado Federal foi rejeitada.
Seus propositores argumentavam que, se agora realmente todo o poder emanava do povo, a concha do Senado Federal, hoje voltada para baixo representando os estados federados, deverá ser reformada para também ser voltada para cima, da mesma forma que a câmara que representa o povo. Os brasileiros, a maioria indiferente à proposta, rejeitaram porque a entendeu ser isto irrelevante. O poder dos estados continuaria simbolizado porque este, igualmente do povo emanado, manteria a tradição da federação de estados e a beleza do cartão postal.

Mal chego em casa, uma angustia invade meu peito. Aliso meu cachorro, tomo um banho e me deito. Meus sentimentos me atraem para algo ruim que se esboça. Não era Manhattam. Minha mente era atraída para um salão nobre de um hotel em uma ilha particular no pacífico. Meu corpo tremula e eu não mais estou preso a ele.


Conspiração ZHAARP (Capítulo 4)


- Não deixaremos que esta anarquia continue a assolar o mundo. Diz um bigodudo senhor no meio da imensa mesa de sessenta lugares ocupados.

- De hoje não passará, senhor Karl Mittali. Apresento-lhes o plano que nossas corporações deverão seguir.

Todos olham ansiosos para o grande holograma que surgiu no auto da mesa. Walton Lee Rockefeller prossegue:

- Vejam esta constelação de satélites ao redor da Terra. A maioria deles estão equipados com canhões Zhaarp que disparados em direção a todas as cidades da Terra, inutilizarão todos os equipamentos eletrônicos. Será o fim da Internet e com ela todas as mobilizações que atentam contra a liberdade dos empreendimentos.

- Mas sem Internet como ficarão nossos negócios? Se voltarmos à era do papel, dos contratos através de correios, nossos lucros cessarão. Diz um gordo senhor.

- Muito simples, senhor Carl Johnson. A partir de amanhã passará a funcionar a mundial rede fotônica, única imune aos pulsos Zhaarp. Todas as nossas operações passarão a utilizá-la. Diferente da Internet baseada em eletrônicos e totalmente descontrolada, a rede fotônica (que utiliza somente raios luminosos) será centralizada e apenas os conteúdos que nos interessam trafegarão por ela. Devemos firmar agora o compromisso de que nossas Industrias nunca mais produzirão eletrônicos. Tiremos assim a ferramenta com que os baderneiros se mobilizam e retomaremos o controle do mundo, a tranqüilidade dos nossos negócios.

Todos aplaudem exultantes. Pequenos hologramas em frente de cada magnata coletam suas assinaturas biométricas. Cada corporação recebe uma parte a ser cumprida no plano. O grande holograma central se transforma em um imenso cronômetro em contagem regressiva mostrando o tempo inicial de seis horas, seis minutos e seis segundos.

Micro explosões sociais!!! (Capítulo 5)

-Fora! Fora! Fora! Traidor! Fora! – Gritava a multidão ensandecida empurrando o careca senhor quarentão pelos corredores da Escola de Tecnologia. O burburinho se arrastava em direção ao Grande Auditório. –Acha que vai poder se explicar?! – Gritava um professor corpulento em meio aos acotovelamentos. A alunada pendurada nas escadas e nos parapeitos do primeiro andar gritavam e atiravam bolas de papéis, cestos de lixo e pratos sujos de merenda no assustado e pálido Diretor que passava embaixo.





As aulas foram interrompidas. O que havia acontecido era grave. De surpresa, aquele diretor oficializou que a Escola não mais ofereceria cursos profissionalizantes. Seria uma mera escola de ensino médio. O ensino técnico agora seria somente pago e, assim, mais distante do jovem pobre. Aquele famigerado havia acatado, sem dialogar antes com a comunidade, uma decisão provisória do Governo. O legislativo estava para realizar a última votação daquela lei e, se ninguém fizesse nada, a última plenária também aprovaria aquele absurdo.


Do meio da balburdia eu observava tudo curioso e espantado. Mais surpreso ainda pela certeza de já me lembrar daquilo tudo antes que realmente acontecesse. Como eu poderia me lembrar do que ainda não havia acontecido? Esta foi mais uma razão pela qual resolvi escrever tudo que acontecesse. Seria uma forma de procurar entender o que estava se passando.

domingo, 20 de julho de 2008

Experimento (Capítulo 5)

No dia em que tudo começou, acordei no meio do nada. Nada mesmo, nem em cima nem embaixo de nada, nem de mim mesmo. Quando apurei meus olhos, percebi que eles enchergavam em todas as direções ao mesmo tempo. Estrelas em breu se fizeram perceber lentamente. Ao longe, uma esfera azul-esverdeada saía da penumbra com que encobria um gigantesco Sol amarelo. Foi aí que percebi onde estava e faltou-me fôlego. Talvez tenha sido psicológico, porque depois senti, surpreso, que não precisava respirar. Não sentia o ar nem o vácuo, nem frio nem calor. Somente medo.

Minha vontade era me recolher àquele pálido ponto esverdeado que se afastava rapidamente. Como se meu desejo fosse um propulsor, ele me atirou naquela estranha atmosfera tal qual um bólido que não queima. Na aproximação, percebi uma esfera prateada cheia de luzes que cruzava aqueles verdes céus no sentido contrário, deixando um rastro de vapor em sua trajetória.

Em mergulho, via uma superfície acidentada serpenteada por rios, mares e montanhas. Em seguida distinguia florestas e, em meio a elas, clareiras cheias de luzes e minúsculas formas retas. Distinguindo uma cidade, pouso espantado, mas acolhido, próximo a uma estranha construção.
Um humanóide de compleição esbelta e pele acinzentada se aproxima do prédio. O estranho se equilibra em cima de uma base metálica plana que flutua, reduzindo tanto a velocidade quanto a altitude em direção a onde eu estava.

O crepúsculo extingue-se progressivamente desfraldando um espetáculo de estrelas no céu daquele planeta, num belo anoitecer com três luas ascendendo no rubro horizonte.

O planador aterriza num magnífico jardim de rosas multicores fluorescentes. Seu passageiro salta daquele objeto que mais parecia um disco de um metro de diâmetro e poucos centímetros de espessura, repleto de pequenas luzes coloridas. Aquilo devia servir para transporte individual rápido.

Digo “Olá!”, mas o humanóide caminha sem dar sinais de perceber a minha presença. Segue a passos síncronos até um cilindro energético esverdeado em que raios luminosos percorrem seu corpo e uma voz robótica exclama, numa língua que desconheço, mas cuja idéia me chega à mente de alguma forma:

- ACESSO PERMITIDO! BEM VINDO AO LAR, SENHOR SMELSON*.

A parede cinzenta à sua frente assume a aparência de um circulo azul metálico e o ruivo e alto senhor atravessa-o como se o obstáculo não existisse. Atravesso-a também e ninguém me percebe. Saúda com uma boa noite o trio familiar que o aguardava na confortável sala. É uma sala de estar escurecida onde se divisam silhuetas de pessoas e de objetos.

- Veja, pai. - Diz um garoto apontando para uma bola prateada se movendo entre eles no simulado espaço estrelado daquela sala. - A Cosmos II acabou de decolar rumo à zona segura de experimentação.

- Sim Frewly*. À velocidade da Luz, a nave deverá chegar lá em dez minutos.

- Torço para que tudo dê certo. - Diz uma senhora ao acionar o artefato luminoso que se posiciona no centro do grupo em forma de mesa. Emergem de seu interior cilindros transparentes que provocam uma inundação aromática e deliciosa em toda a sala.

Os hologramas do espaço sideral somem aos poucos e uma luminosidade amarelada invade o ambiente.

- O Jantar de hoje é um especial estráfio[1] produzido no planeta Astart* do sistema estelar Relim*. Diz a elegante senhora.

- Parabéns querida! Você realmente adivinhou o que nós queríamos comer.

- Obrigada meu bem. Meu instinto maternal sempre acerta. – Gaba-se.

- Gentileza sua com a mamãe, Pai. Mesmo que o instinto dela falhasse, ela ainda poderia contar com a comunicação psíquica direta.

Todos riem da observação de Frewly. Menos eu, incógnito e meio por fora.

Ah! Já ia me esquecendo. Está na hora do inédito show ao vivo dos Rêmilis*. Vamos participar antes do grande momento da Cosmos II. - Fala o patriarca enquanto aciona psiquicamente a projeção holográfica que faz surgir ao redor do grupo os artistas de um esdrúxulo espetáculo de dança, som e efeitos que se realizava a anos-luz de distância. - Ainda bem que nosso comunicador taquiônico está funcionando devidamente. Só assim podemos participar ao vivo de todos os programas da galáxia. Os três juntam-se aos avatares holográficos e todos dançam e cantam alegremente. Olham-se ternamente, riem, pulam e brincam.

- Chegou o momento! – Diz o pai quando percebe que o ambiente mudava. Novamente estávamos inundados de espaço sideral. A prateada esfera diminui sua velocidade relativa às estrelas, planetas e aglomerados estrelares que formavam o fundo da cena. Ela estabiliza na órbita de um planeta terroso e seu satélite, ambos sem atmosfera e cheios de crateras. Quatro quartos de esfera oca se desprendem ordenadamente e param eqüidistantes da nova esfera agora a descoberto.

Os três kelpscianos cinzentos se abraçam e observam apreensivos.

- Conforme as energias envolvidas no experimento, diz Smelson, a zona segura possibilitará que, em caso de algo sair errado, nem mesmo as areias do Planeta Drynner* serão sopradas.

Os quartos de esfera inundam o espaço entre elas com uma azulada luz. A esfera no centro começa a ficar transparente. Transitando entre a translucidez e a opacidade, começa a encolher aceleradamente até sumir. De repente, os quartos de esfera se amassam em direção ao núcleo como folhas de papel alumínio e a face do planeta Drynner, voltada para o experimento, se esfacela progressivamente.


A família se abraça mais forte. Sabem que alguma coisa saiu errada. Os pedaços montanhosos do planeta voam sugados em direção ao invisível, deixando à mostra o luminoso núcleo de magma planetário. Enquanto o moribundo planeta e sua lua são engolidos por aquele nada, a imagem aumenta como que dele se aproximasse. Esta imagem segue como uma sonda filmadora em meio aos novos asteróides igualmente sugados até que a mesma se apaga. A sala da família kelpsciana retorna à fria luz.

Eu me desespero. Quero saber o que está acontecendo. Minha vontade lança-me de súbito na órbita daquele planeta. Vejo distante um disforme anel de luzes multicores que se expande aceleradamente engolindo tudo ao seu caminho com seu centro escuro e vindo em minha direção. Olho para o planeta abaixo de mim. Inúmeras famílias para um trágico destino. A mais distante das três luas começa a se despedaçar.

Lanço-me novamente em direção àquela cidade, à casa. Eles estão abraçados, mas para minha surpresa parecem tranqüilos, resignados. Depois não mais se abraçam. Apenas se dão as mãos e fecham placidamente os olhos. O patriarca apenas diz: -Nos reencontraremos em breve.

Sinto que tudo é muito rápido, mas talvez minha estressada aceleração mental me fizesse ver tudo em câmera lenta. Assisto seus rostos se deformarem até sangue amarelo e ossos marrons serem expostos. A casa e seus objetos se deformam igualmente. As cidades, rios, florestas e montanhas se misturam num caos destruidor e eu fujo dali desesperadamente.

Ainda volto meu olhar para a região cataclísmica. Fico surpreso por ver que havia me distânciado tantos milênios luz em tão pouco tempo. Vejo estarrecido a imensa nebulosa com suas três supernovas a serem lentamente devoradas por aquele buraco negro.Acordo ofegante, suado e assustado. Era muito real para ter sido apenas um pesadelo. Suspiro de alívio.









*[1] Nota do Franzé – Algumas palavras me chegaram incompreensíveis à mente. Talvez porque a comunicação se dê por idéias e não por fonemas, e como eu não possuo idéias correspondentes a estas palavras, elas não equivalem a nenhum som que conheço. Assim, tomei a liberdade em substituir estes sons esquisitos por palavras que de alguma forma se pareçam com eles.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Sociomicrocosmacro



Ao olhar pras artimanhas no Mundo,
O homem e as máquinas que ele faz,
Com as lentes do meu neurar fecundo
Percebo a humanidade mais e mais.

Conecto-me agora às ciberredes,
Desafiando espaços sociais,
Vejo que o virtual unir dos homens,
Democracia milenar nos traz.

Mas pra que direta democracia,
Se a representativa nos apraz?
Questiona quem o Mundo gerencia.

Mas a maioria acorda tenáz
E os microcósmos de cada homem
Explodem os Big Bangs sociais.

Prólogo: A Combi preta ou como a História do Big Bang Microcósmico chegou até nós.


"A propaganda é para a democracia burguesa o que o cassetete é para o estado totalitário".(Noam Chomsky)
Quando a Mídia não detém as novas idéias, o porrete volta à cena?

Tem coisas que a gente pensa que nunca vai acontecer conosco ou com alguém
conhecido.

Naquela manhã acordei cedo, tomei banho e café rápidos e joguei a mochila nas costas. Fiz a caminhada habitual em direção ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará, CEFET-CE. Odeio acordar cedo, mas a grana de bolsista de laboratório de informática, apesar de mixuruca, era um grande motivador a quem não tinha outra opção para sair da típica "liseira" estudantil. Aquele era o único e ingrato horário que me ofereceram e tive que aceitar. Geralmente chego atrasado de propósito pra poder dormir um pouco mais e também para aproveitar o fato de que ninguém usa mesmo o laboratório às 7h da manhã em ponto. Talvez porque a maioria também odeie acordar cedo mesmo. Mas neste dia havia outro motivador: meu amigo Franzé me ligou ansioso na noite anterior querendo urgentemente me entregar um material que, segundo ele, não poderia ficar nas mãos de uma única pessoa. Não teceu detalhes, agendou comigo às 6:30 no laboratório e desligou.

Passei a noite preocupado. Devia ser algo grave mesmo, pois meu amigo nunca telefonava. Tinha o hábito de falar sempre pessoalmente. E agendar tão cedo assim...? Definitivamente, era grave! Não era típico de um astrônomo amador que geralmente tem hábitos noturnos querer resolver alguma coisa tão cedo.

Caminhando introspectivo em frente à Escola de Cinema da Universidade Federal, resolvi cortar caminho por dentro daquele Campus enquanto imaginava o que meu amigo desejava me entregar. Quando cruzei o portão em frente ao bloco da Psicologia, entrando na deserta rua onde mora o humorista Falcão, palpitei de alegria ao ver o simpático e moreno rosto do Franzé que cruzava a esquina do Bar Cantinho Acadêmico.

Ele pára, me sorri, e volta o rosto e a mão direita pra dentro da mochila, de onde retira um CD-ROM. Foi quando uma combi preta freia do seu lado e dois marmanjos de farda verde-oliva saltam da porta semi-aberta onde vi de relance o letreiro: CETEX. O reflexo que tive foi me esconder rapidamente num recuo de muro enquanto o Franzé só teve tempo de gritar: - CONJUNÇÃO!!! - enquanto quebrava o CD, cortando feio as mãos antes de ser arrastado pela camisa pra dentro daquela combi de placa branca que cantou pneu em disparada pela Avenida 13 de maio.

Agora meu palpitar era de medo! Passei pelos cacos ensangüentados do CD espalhados pelo asfalto e corri até a esquina pra me certificar de que o veículo havia mesmo sumido. Respirei aliviado e resolvi fazer o resto do caminho até o Cefet-Ce contornando a praça da Gentilândia para entrar no Centro Tecnológico por trás, pela rua do Estádio Presidente Vargas. Assim, por precaução, despistava um pouco enquanto meditava sobre o ocorrido através de uma caminhada mais longa.

Será que eles virão atrás de mim? Quando agarraram o meu amigo, não deixei que me vissem de forma alguma. Será que me associariam de alguma forma ao Franzé? Achava pouco provável. Mantinha tanto contato com ele quanto a maioria dos outros colegas de faculdade. Mas e aquela única ligação telefônica? Aliviado, lembrei dos bips característicos das unidades de cartão telefônico sendo subtraídas. Um grampo num orelhão escolhido a esmo era quase impensável. Nisto o Franzé fora cuidadoso. Mas porque pegaram o cara? O que fariam com ele? Minha cabeça fervilhava enquanto entrava no CEFET.

A primeira ação que fiz ao entrar no laboratório foi pesquisar no Google a sigla CETEX cruzada com a palavra Exército. Mas o que o "Centro Integrado de Telemática do Exército" poderia querer...? E o que o Franzé quis dizer com a palavra "conjunção"? A palavra me lembrou a única vez em que assistimos juntos uma conjunção de planetas com a Lua no céu. Era algum dia de março de 1996 quando nos reunimos na casa dos pais do professor Omar e fizemos várias astrofotografias da triangulação formada pela Lua, Vênus e por Saturno. Foi neste contexto que aconteceu um fato inusitado e sem explicação física plausível, mas como todos do grupo de astronomia éramos muito céticos, deixamos o assunto pra lá.

O Franzé é o tipo de pessoa do qual se conhece mais as idéias que a vida pessoal. A sua idéia de que Universos se recriam constantemente até mesmo dentro de nós, por exemplo, eu tento entender até hoje. Ele veio sozinho de São Paulo há alguns meses e freqüentava o CEFET como aluno especial até que conseguisse a necessária transferência. Já com relação às idéias, meus amigos que discutiam Filosofia e Física no meio acadêmico o tinham como o mais marcantemente lógico, racional, cético e humano de todos.

O inexplicável era o fato de que, na primeira vez em que o levei ao Observatório e o apresentei ao professor Omar, este ao lhe fazer um convite para participar das astrofotografias da dita conjunção, simplesmente impediu que o professor lhe dissesse o endereço. Para espanto dos presentes, descreveu em detalhes o lugar como se já estivesse ido lá.

Enquanto buscava nexo entre o rapto e a conjunção, minha caixa de correio eletrônico sinalizou uma nova mensagem: Era um e-mail do Franzé! Abri rápido. Continha apenas um anexo e uma frase: "tanto ascende quanto declina". Clicando no anexo, surgiu uma tela requisitando uma senha. Só haveria um jeito de ler a mensagem criptografada: encontrar um nexo entre a conjunção e aquela frase esquisita. Quem ascende e declina são os astros, pensei. Tentei então as combinações possíveis de Lua, Vênus e Saturno, mas nada. Pensei, pensei... E se fosse a seqüência numérica da ascensão reta e da declinação da conjunção planetária? Lembrei que tinha o anuário do Mourão na mochila e após consultar, digitei: 22 37 56 01 32 56. - Eureca!!! - Então, ofegante, consegui ler a mensagem:

Prezado Moura,

Programei no servidor de e-mail uma rotina que dispararia esta mensagem caso eu não a reagendasse hoje às 7h da manhã. Se você recebeu esta mensagem, é porque a informação que precisa ser divulgada urgentemente está sob o risco de ser silenciada e decidi confiar a você o destino da mesma.

Por precaução, a mesma rotina que enviou esta mensagem formatou fisicamente o servidor "Benfica". Sugiro que faça o mesmo com sua máquina. Depois vá até o banheiro masculino ao lado da escada do corredor central. Sobre o segundo Box, há um alçapão que dá acesso ao forro do telhado. Na base da terceira coluna da direita há um jornal velho. Dentro dele há uma caixa de CD-ROM. Pegue, proteja e publique.

Atensiosamente.

Francisco José

Estupefato e ansioso, fiz o rastreamento dos caminhos por onde aquele e-mail tinha passado. Aliviado, vi que apenas o servidor de e-mails Benfica e a minha máquina estavam envolvidos. Pinguei no IP 200.17.33.1 e verifiquei que realmente o Benfica estava fora de combate, mas não confiava em formatação. Qualquer ferramenta de recuperação de disco é capaz de restaurar dados. Contra isto, só havia um jeito. Corri até o Diretório dos Estudantes e, como eu era diretor e tinha a chave, entrei e peguei o grande imã de caixa de som usado pra segurar uma pilha de cartazes. Corri ao laboratório e passei a belezinha nos Discos MAgnéticos do servidor e da minha máquina. Pronto! Dane-se a dor de cabeça que terei depois para arrumar a bagunça.

Chegaram os primeiros usuários do laboratório. Entre reclamos de servidor fora do ar, agüentei minha curiosidade até que meu horário de trabalho terminasse. Afinal, se ele realmente estivesse lá, o local mais seguro para o CD era o forro mesmo. Até que chegou o outro bolsista e eu saí quase correndo.

Inspecionei o banheiro. Havia somente um aluno branquinho lavando as mãos. Faço de conta que mijo e, quando o cara sai, fecho a porta principal do banheiro e subo no forro. Realmente estava lá. Desço um pouco sujo de poeira, mas com o CD já dentro da calça. Fui direto pra casa.

Passei o resto do dia lendo o conteúdo do CD. Eram centenas de páginas onde o Franzé relatava uma história intrigante que dizia respeito ao futuro com revelações que me arrepiavam a espinha. Por precaução, fiz cópias do CD-ROM e o escondi em lugares estratégicos. Programei também uma rotina de mensagem criptografada a partir de meu sitio pessoal. Agora estava pensando no que fazer para ter meu amigo de volta. Abriria um B.O. de pessoas desaparecidas? Não, isso seria me expor. Comunicar a família dele? Como achar sua família? Talvez fosse possível se pesquisasse na sua ficha de transferência. Amanhã pensaria em como ver a dita ficha.

No dia seguinte, para minha surpresa, o Franzé entra no laboratório como se nada tivesse acontecido.

-Cara, pra onde te levaram ontem? – pergunto-lhe quase cochichando.

-Levaram? Que estória é essa?

-Uns caras numa combi preta!

-Ontem passei o dia em casa cuidando do corte da minha mão direita que machuquei cortando uma laranja.

-E o CD?

-Que CD?

-Deixa pra lá agora. Depois converso na calma e à sós com você.

O Franzé deu de ombros com uma sinceridade que me intrigou.
Por vários dias tentei lembrá-lo do acontecido e nada. Até que recebi uma notícia de que ele havia conseguido uma transferência para o Rio de Janeiro e se foi. Três meses depois ele me enviou um triste e-mail dizendo que sofria de uma doença terminal. Morreu quase um ano depois.

Hoje faz dez anos que atualizo diariamente uma rotina de e-mail automático criptografado e guardo aquele CD. Tenho medo de que, ao tentar publicá-lo, uma combi preta me pare na rua.

O problema é que a História escrita pelo Franzé está cada vez mais se confirmando diariamente. Isto tem feito meu senso de dever tornar-se superior à minha covardia.

Bem, se você está lendo isto agora, é porque tomei coragem. Por cautela, para sondar se ainda há perigo, resolvi publicar um a um os capítulos do CD no Blog http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/ que divulgo com os amigos. Aos verde-olivas aviso-lhes que todo o conteúdo do CD será automaticamente disseminado na Internet se alguma combi preta nos parar na rua.

Microcosmacro

A olhar num microscópio de fundo,
As moléculas, átomos, os quarks...
Com as lentes do meu neurar fecundo
Mergulho no infimo mais e mais.

Empunho agora um telescópio
Desafiando espaços-temporais
E no fim do Universo vejo a Terra
Na curva luz, de bilênios atraz.

Acoplo lentes do neurar fecundo
Submerjo do macro mais e mais
Em raios não curváveis como a luz.

Assim, no telescópio e microscópio,
No macro vejo-me dentro de um átomo,
No micro outro universo me reluz.