domingo, 20 de julho de 2008

Experimento (Capítulo 5)

No dia em que tudo começou, acordei no meio do nada. Nada mesmo, nem em cima nem embaixo de nada, nem de mim mesmo. Quando apurei meus olhos, percebi que eles enchergavam em todas as direções ao mesmo tempo. Estrelas em breu se fizeram perceber lentamente. Ao longe, uma esfera azul-esverdeada saía da penumbra com que encobria um gigantesco Sol amarelo. Foi aí que percebi onde estava e faltou-me fôlego. Talvez tenha sido psicológico, porque depois senti, surpreso, que não precisava respirar. Não sentia o ar nem o vácuo, nem frio nem calor. Somente medo.

Minha vontade era me recolher àquele pálido ponto esverdeado que se afastava rapidamente. Como se meu desejo fosse um propulsor, ele me atirou naquela estranha atmosfera tal qual um bólido que não queima. Na aproximação, percebi uma esfera prateada cheia de luzes que cruzava aqueles verdes céus no sentido contrário, deixando um rastro de vapor em sua trajetória.

Em mergulho, via uma superfície acidentada serpenteada por rios, mares e montanhas. Em seguida distinguia florestas e, em meio a elas, clareiras cheias de luzes e minúsculas formas retas. Distinguindo uma cidade, pouso espantado, mas acolhido, próximo a uma estranha construção.
Um humanóide de compleição esbelta e pele acinzentada se aproxima do prédio. O estranho se equilibra em cima de uma base metálica plana que flutua, reduzindo tanto a velocidade quanto a altitude em direção a onde eu estava.

O crepúsculo extingue-se progressivamente desfraldando um espetáculo de estrelas no céu daquele planeta, num belo anoitecer com três luas ascendendo no rubro horizonte.

O planador aterriza num magnífico jardim de rosas multicores fluorescentes. Seu passageiro salta daquele objeto que mais parecia um disco de um metro de diâmetro e poucos centímetros de espessura, repleto de pequenas luzes coloridas. Aquilo devia servir para transporte individual rápido.

Digo “Olá!”, mas o humanóide caminha sem dar sinais de perceber a minha presença. Segue a passos síncronos até um cilindro energético esverdeado em que raios luminosos percorrem seu corpo e uma voz robótica exclama, numa língua que desconheço, mas cuja idéia me chega à mente de alguma forma:

- ACESSO PERMITIDO! BEM VINDO AO LAR, SENHOR SMELSON*.

A parede cinzenta à sua frente assume a aparência de um circulo azul metálico e o ruivo e alto senhor atravessa-o como se o obstáculo não existisse. Atravesso-a também e ninguém me percebe. Saúda com uma boa noite o trio familiar que o aguardava na confortável sala. É uma sala de estar escurecida onde se divisam silhuetas de pessoas e de objetos.

- Veja, pai. - Diz um garoto apontando para uma bola prateada se movendo entre eles no simulado espaço estrelado daquela sala. - A Cosmos II acabou de decolar rumo à zona segura de experimentação.

- Sim Frewly*. À velocidade da Luz, a nave deverá chegar lá em dez minutos.

- Torço para que tudo dê certo. - Diz uma senhora ao acionar o artefato luminoso que se posiciona no centro do grupo em forma de mesa. Emergem de seu interior cilindros transparentes que provocam uma inundação aromática e deliciosa em toda a sala.

Os hologramas do espaço sideral somem aos poucos e uma luminosidade amarelada invade o ambiente.

- O Jantar de hoje é um especial estráfio[1] produzido no planeta Astart* do sistema estelar Relim*. Diz a elegante senhora.

- Parabéns querida! Você realmente adivinhou o que nós queríamos comer.

- Obrigada meu bem. Meu instinto maternal sempre acerta. – Gaba-se.

- Gentileza sua com a mamãe, Pai. Mesmo que o instinto dela falhasse, ela ainda poderia contar com a comunicação psíquica direta.

Todos riem da observação de Frewly. Menos eu, incógnito e meio por fora.

Ah! Já ia me esquecendo. Está na hora do inédito show ao vivo dos Rêmilis*. Vamos participar antes do grande momento da Cosmos II. - Fala o patriarca enquanto aciona psiquicamente a projeção holográfica que faz surgir ao redor do grupo os artistas de um esdrúxulo espetáculo de dança, som e efeitos que se realizava a anos-luz de distância. - Ainda bem que nosso comunicador taquiônico está funcionando devidamente. Só assim podemos participar ao vivo de todos os programas da galáxia. Os três juntam-se aos avatares holográficos e todos dançam e cantam alegremente. Olham-se ternamente, riem, pulam e brincam.

- Chegou o momento! – Diz o pai quando percebe que o ambiente mudava. Novamente estávamos inundados de espaço sideral. A prateada esfera diminui sua velocidade relativa às estrelas, planetas e aglomerados estrelares que formavam o fundo da cena. Ela estabiliza na órbita de um planeta terroso e seu satélite, ambos sem atmosfera e cheios de crateras. Quatro quartos de esfera oca se desprendem ordenadamente e param eqüidistantes da nova esfera agora a descoberto.

Os três kelpscianos cinzentos se abraçam e observam apreensivos.

- Conforme as energias envolvidas no experimento, diz Smelson, a zona segura possibilitará que, em caso de algo sair errado, nem mesmo as areias do Planeta Drynner* serão sopradas.

Os quartos de esfera inundam o espaço entre elas com uma azulada luz. A esfera no centro começa a ficar transparente. Transitando entre a translucidez e a opacidade, começa a encolher aceleradamente até sumir. De repente, os quartos de esfera se amassam em direção ao núcleo como folhas de papel alumínio e a face do planeta Drynner, voltada para o experimento, se esfacela progressivamente.


A família se abraça mais forte. Sabem que alguma coisa saiu errada. Os pedaços montanhosos do planeta voam sugados em direção ao invisível, deixando à mostra o luminoso núcleo de magma planetário. Enquanto o moribundo planeta e sua lua são engolidos por aquele nada, a imagem aumenta como que dele se aproximasse. Esta imagem segue como uma sonda filmadora em meio aos novos asteróides igualmente sugados até que a mesma se apaga. A sala da família kelpsciana retorna à fria luz.

Eu me desespero. Quero saber o que está acontecendo. Minha vontade lança-me de súbito na órbita daquele planeta. Vejo distante um disforme anel de luzes multicores que se expande aceleradamente engolindo tudo ao seu caminho com seu centro escuro e vindo em minha direção. Olho para o planeta abaixo de mim. Inúmeras famílias para um trágico destino. A mais distante das três luas começa a se despedaçar.

Lanço-me novamente em direção àquela cidade, à casa. Eles estão abraçados, mas para minha surpresa parecem tranqüilos, resignados. Depois não mais se abraçam. Apenas se dão as mãos e fecham placidamente os olhos. O patriarca apenas diz: -Nos reencontraremos em breve.

Sinto que tudo é muito rápido, mas talvez minha estressada aceleração mental me fizesse ver tudo em câmera lenta. Assisto seus rostos se deformarem até sangue amarelo e ossos marrons serem expostos. A casa e seus objetos se deformam igualmente. As cidades, rios, florestas e montanhas se misturam num caos destruidor e eu fujo dali desesperadamente.

Ainda volto meu olhar para a região cataclísmica. Fico surpreso por ver que havia me distânciado tantos milênios luz em tão pouco tempo. Vejo estarrecido a imensa nebulosa com suas três supernovas a serem lentamente devoradas por aquele buraco negro.Acordo ofegante, suado e assustado. Era muito real para ter sido apenas um pesadelo. Suspiro de alívio.









*[1] Nota do Franzé – Algumas palavras me chegaram incompreensíveis à mente. Talvez porque a comunicação se dê por idéias e não por fonemas, e como eu não possuo idéias correspondentes a estas palavras, elas não equivalem a nenhum som que conheço. Assim, tomei a liberdade em substituir estes sons esquisitos por palavras que de alguma forma se pareçam com eles.